10 de abr. de 2015

fruta tirada do pé. cara de criança quando apronta. banho de cachoeira. família. ter fé em Deus. polenta (cozida) com  molho de galinha. caminhar descalço na grama. um livro de García Márquez. pôr do sol no Guaíba. fotografia antiga. banho de chuva. piada sem graça. lamber a tampa do iogurte. pirraça de irmãos. borboletas. correr pro mar. bergamota e sol. sorrisos (sinceros).  ter saudades. a mesma frase dita ao mesmo tempo. ouvir o dizer: "hoje lembrei de você quando...". sorvete de doce de leite. barulho de chuva e tempo livre para dormir (ao mesmo tempo). bossa nova. o nordeste do Brasil.
toda bonita é a vida. tão bom quanto escrever. quanto ouvir uma música. um abraço. quanto contar dos sonhos. da noite passada. vinho branco gelado.
tem muito céu desaguando sutilezas.

6 de out. de 2014

Eu  só queria parabenizar minha irmã e amiga para toda vida e hoje CONCURSADA por mais essa conquista (mas como sempre não consigo dizer nada em apenas um parágrafo).Confesso que nesses últimos dias quis te matar por escolher fazer concurso do tipo que tem que fazer prova física, prova psicológica e não sei mais quantas fases. Deusss, coração não aguenta!! E tu sempre rindo da minha cara de preocupação. Mas eu também sei que se fosse eu no teu lugar não teria ficado nervosa nem pela metade. Eu sempre muito mais preocupada com ela do que ela mesmo. PARABÉNS, PARABÉNS E PARABÉNS INFINITO. É uma colheita muito mais que merecida, e agora eu acho que finalmente tu vai vir pra perto de mim, né? Juro que pago uma Nono Ludovico pra comemorar isso (e como, do verbo comer, até quatro queijos).
Por um instante me recordei da época em que ela prestava vestibular, meu Deus, ela tinha 15 anos, pra mim era uma bebê. Com 16 aninhos (DEZESSEIS) saiu de casa, e eu lamentava porque não viera pra perto de mim. Todo santo dia eu rezava por ela, longe de qualquer conhecido, longe de todos os amores. Me reconheci nessa história. E acho que por isso mesmo, sentia medo. Mas tudo na vida tem um propósito, não é? Hoje ela não é mais minha pequena, aliás, acho que já faz horas isso. Esses dias quando ela pegava o diploma eu preciso dizer que não me aguentava. Era uma emoção diferente, sabe? Eu, talvez mais do que qualquer outra pessoa, sabia tudo que ela renunciou para ir atrás dos sonhos. Senti tanto orgulho que não cabia em mim. A minha pequena, aquela que eu morria brigando por ouvir música a todo volume enquanto eu queria viajar nos meus livros, havia se tornado uma mulher que eu admirava: íntegra, honesta e batalhadora. Tinha como as coisas não darem certo pra uma pessoa assim?!
Teu caminho é de sucesso, aposto todas as minhas fichas nisso. E eu ainda tenho muitomuitomuito pra te aplaudir, porque eu sei que isso tudo é apenas o começo.
A gente não escolhe os irmãos, e a mais pura verdade, é que Deus não poderia ter me dado uma irmã melhor

Te amo.

28 de ago. de 2014

Nesses fins de tarde curtos de inverno, ele vem com o cachorro e se senta no banco ao lado dela. Pode estar frio, sem um mísero raio de sol, lá está ela lendo, e é tão curioso que ela sabe exatamente quando ele vai chegar, noto porque sempre arruma o cabelo antes. Eu acho tão querido que sempre pego a esteira de frente pra rua.

Eles se olham e trocam duas ou três palavras.

Ela finge que continua lendo e enrola os cabelos como quem estende a vida para fingir que ele não mexe com ela. Se ela se distrai e olha para o céu, ele aproveita para admirar os olhos dela. Quando ela se volta para ele, ele esmorece e começa a brincar com o cachorro.
Ele não sabe que ela desenha borboletas como ela não suspeita que ele atrasa o play om os amigos só para ficar com ela, olhando pra ela.
Tem um botão do vestido dela no bolso dele. Há incontáveis rascunhos em papel colorido com o nome dele espalhados pelas gavetas do quarto dela.
Ela sonha toda as noites que gaivotas brilham no escuro quando ele a convida pra dançar. Ele guarda a roupa de gala que era do pai para o dia que tocar Bee Gees.
Ela se perde nos pontos da trança. seu cabelo não tem comprimento suficiente para contar a idade dele: o último laço dá nos doze anos; ele tem quatorze. Quase!

Quando a mãe dela aparece, eles se levantam no mesmo instante.
Ela diz "tchau" e sai sorrindo de canto. Ele diz "tchau" e fica.

Antes de dormir, ela pede a Deus que encurte a calçada; ele pede coragem.

Saudade dos meus 13 anos.

2 de mai. de 2014

para um dos grandes amores da minha vida

Quando ela veio ao mundo a dona Marlene me olhou com aqueles olhos serenos (que mais tarde eu vim a descobrir muito espertos também) e disse: “filha, não têm mais bicos no mundo, você precisa dar o seu para sua maninha.” Eu, no auge dos meus 4 anos de idade, então, aprendi a dar sem pensar em troca.

Eu era tão gente grande quando ela nasceu que até escolhi o nome dela (coisa que ela nunca me agradeceu, porque era pra ser alguma coisa com Josi e lá vai fumaça).

Micheli (com i no fim, né mãe?), minha irmã. O paraíso avesso. A paciência longa. O jeito de monstra quando acorda e fica correndo em volta da mesa de centro da sala cantando feito uma doida varrida. A preferência por batata frita. As brigas. A cumplicidade. A certeza: desde que ela veio eu não fui mais sozinha. Não sou.

E nesse sábado, a parte nerd da família se tornou uma Engenheira Química (isso deve ser o ápice da “nerdisse” no mundo), e vendo-a no palco com aquela toga, fui chorando e relembrando cada coisinha bem devagar. Passou um filme.

Ela me ensinou a olhar pra trás. Quando eu segurei aquela mãozinha que era igual a das minhas bonecas, nunca mais olhei pra frente sem pensar se ela vinha junto. E se o caminho estivesse difícil? Eu pouco me importava em tirar as pedras pra ela, machucar meus pés, ou qualquer coisa que a fizesse andar melhor. Tudo por ela e sempre.

Ela me ensinou a dosar nas ações, explosões, reações. Puxões de cabelos, mordidas, chocolates roubados e mágoas. “-Eu nunca mais vou falar contigo!!” “-Quem disse que eu ligo?” E no dia seguinte aquele sorriso, derrubando as birras maiores para dar vez ao que sempre é maior. O nós, quando já não tem mais eu e você.

Ela me ensinou a torcer, a apoiar idéias malucas (“-Quero uma moto?” “-Ã? Meu deus, uma moto não! (...) Tá, tá bom, mas toma cuidado viu”), só para notá-la em paz.

Enquanto eu fazia pose pras fotos ela chorava de soluçar. Enquanto eu tinha mil e uma bonecas ela só queria saber de carrinhos e cachorros. Enquanto eu gostava de ler e escrever ela preferia música, foi dureza tentar se concentrar com Pitty no volume que dava pra ouvir no mais longe dos meus contos de fada.

São tantas diferenças pequenas. São tantas semelhanças grandes.

Eu fui a primeira a pegar minha mochila e ir atrás dos sonhos. Ela veio depois, com os mesmos dezesseis. Eu sabia da dureza, da dor, eu sabia direitinho tudo que ela ia passar. Tive vontade de pegar no colo e dizer: mana, fica comigo que eu cuido de ti, eu te protejo do mundo, não deixo te machucarem. Me conti até a unha. Só eu sei quanto eu rezei por ela.

Maninha, preciso tirar o diminutivo dessa palavra, já passou da hora né? Cá estou eu me desmanchando em lágrimas te vendo conquistar o maior dos sonhos (até hoje). E seguirei me desmanchando quando tu conquistar os outros. Todas essas palavras talvez nunca tenham sido ditas. Sempre achei desnecessário expor o que me coração sente tão óbvio. Mas se eu pudesse escolher, diria que é assim mesmo que eu prefiro. Oi rápidos e sinceridades como “Não tô a fim de falar agora, me deixa em paz”. Prefiro aquela fotografia na prainha, onde o “pretume” revela o quanto o sol era bom pra aquelas guriazinhas levadas que murchavam na água e contavam os minutos depois do almoço: “Mãe já dá pra ir? Olha, nem tem mais sol!”. Prefiro lembrar do piu piu em um dos nossos bolos de aniversário. Prefiro lembrar dela a cada vez que eu escuto Eu não existo longe de você. Prefiro a briga pelas moedas do pai. Prefiro noites como aquela em que o nosso hamster quebrou o pino da gaiola e ficamos revezando (enquanto uma segurava a portinha da gaiola deitada no chão, a outra dormia e vice-versa), só pra ele não fugir de novo (imagina que perigo ele ir embora pra sempre?). Prefiro ainda as histórias cheias de detalhes. O dom de me fazer passar vergonha e me irritar profundamente. Lealdade, perfeição torta, defeitos. É amor. Amor daqueles costurados no ponto mais bem feito. Mãe que costurou.

Sou por ti, mana. Não vou parar de ser antipática com minhas opiniões intrometidas, digo tudo pelo querer bem, que é tão grande que nem cabe. É orgulho o que sinto pela tua valentia, pela tua sinceridade, pela tua determinação, pelo teu altruísmo, pela tua maturidade.. É orgulho que eu sinto, não só hoje, mas desde aquele dia que eu te dei o meu bico e segurei a tua mãozinha de boneca. Tu é linda apenas por ser, e tem um sorriso que ilumina todos os meus dias.

E seja lá o que for eu faço o que for melhor pra ti.

Agora VOA minha Engenheira, eu crio asas se preciso for. “Tamo junto”, pra sempre.

28 de abr. de 2014

Cruzeiro Roupa Nova

eu era uma menina de 12 anos quando aprendi a tocar whisky a Go Go. desde aquele dia sempre morri de vontade de um dia ver e ouvir de perto.

Cruzeiro Roupa Nova – O SHOW! entre uma música e outra, várias reflexões sobre a vida e o nosso significado nela são feitas, e a gente acaba saindo de lá com aquelas lágrimas de guriazinha boboca e feliz por perceber que o caminho escolhido para a Luz é esse mesmo que a gente decidiu seguir. como um navio que vai entrando para o mar ao anoitecer, a gente vai percebendo que mesmo com toda a escuridão da noite no oceano, nós podemos ser pontos de luz a iluminar o que nos rodeia como um gigante pequeno frente a imensidão das águas. e que isso é muito! é navegar para lugares nos quais a maior parte das pessoas não compreende que o caminho que vai dar no Sol não é bem o aparentemente claro, mas aquele no qual muitas vezes a gente vai parar para tentar enxergar melhor o chão ou para resgatar alguém que tenha se perdido ou desistido de prosseguir.

enquanto o show do Roupa Nova adoçava meus ouvidos, eu ia me dando conta de que os caminhos da vida são, na verdade, sempre escuros, e que somos nós que devemos iluminá-los para alcançar o manto do Mestre e tornar o trajeto de quem vem atrás menos árduo. a Luz é uma estrela que a gente bota pra fora para clarear cada passo do nosso caminhar e do caminhar dos que vêm com a gente.

e se alguém compartilhar dessa minha paixão, eu digo: não percam um show do Roupa Nova por nada! se a oportunidade vier, não deixem de ir.

é de chorar.
é de sorrir pro resto da vida.

2 de abr. de 2014

lembro como se fosse hoje o dia em que minha mãe chegou em casa com aquelas sacolas bonitas que enchem a gente de curiosidade para saber se tem presente lá dentro. o sorriso da minha mãe, meio maroto, meio de mãe mesmo, entregava tudo antes de eu sair correndo e arrancar a sacola da mão dela. "Mãe, o que tu trouxe pra mim?". eu tinha seis anos quando abri aquele embrulho e me deparei com uma caixinha de vidro com um laço vermelho. fui abrindo com aquela felicidade desesperada de ser mais feliz de criança, enquanto a dona Marlene dizia "Calma, Josiani, assim tu vai quebrar o presente antes de saber o que é!".
abri, era um coisa redonda, pesada, com uns pauzinhos que se mexiam sozinhos dentro dele, num mesmo sentido, num mesmo tempo de pausa e movimento, feito uma coreografia de dança circular. fiquei alguns segundos olhando pra ver se encontrava alguma graça naquilo.
"Hoje tu vai aprender a contar as horas!". é um relógio! uauuu, um relógio! e minha mãe sentou ao meu lado e me mostrou como aqueles números mudariam a minha vida para sempre.
naquele dia nasceu a minha pressa e a minha tristeza ao saber que quinze minutos depois eu teria que parar de brincar e ir jantar. a partir daquele dia eu soube o quanto uma aula de matemática demoraria a passar, descobriria que eu não teria a vida inteira para brincar de esconde-esconde, pois um dia, depois daqueles pauzinhos darem um montão de voltas, eu deixaria de achar graça no brincar de esconde-esconde. agora tudo estava mudado, tudo tinha hora marcada, e eu não podia mais ser livre como antes. estava presa para sempre às regras do tempo: horário para acordar, estudar, almoçar, brincar, ir buscar minha mana, arrumar o quarto; e mais tarde: horário para aula na faculdade, final de semana para ver os amigos, ansiedade antes de um encontro, desespero de um atraso e um montão de outras coisas que se eu soubesse como funcionava não faria tanta questão de conhecer.
e comecei a olhar mais tempo para aquele objeto do que para a vida. vejam só, se isso mesmo pode ser verdade? a preocupação com o tempo foi tomando o espaço do meu viver. agora mesmo estou pensando em como eu queria parar o tempo e ficar aqui atirada na grama lagarteando no sol até quando eu terminasse de escrever tudo que sinto.

21 de mar. de 2014

-Eu disse para a mãe que eu estava pensando em casar contigo. Aí ela me disse que tu como uma moça bonita já deveria ser casada, é verdade isso?

-Não, Léo. Eu ainda não encontrei meu príncipe.

-Hmm... Mas olha, não fica triste. Não tem a ver com sermos bonitos ou não. Eu sou bonito e ainda não encontrei ninguém para casar comigo.

Leonardo, 8 anos

19 de mar. de 2014

Ontem à noite eu resolvi fazer uma massa, enquanto esperava a água ferver fui para a cama ler. O livro me prendeu tanto a atenção que esqueci da panela e da fome. Fui dormir.

Eu não me lembro da última vez que tive pesadelos na vida. Eu deito e durmo e só acordo com o despertador. Mas hoje, por volta das 2hs eu acordei chorando, assustada, havia tido um pesadelo realmente digno deste nome. Então, resolvi levantar e ir até a cozinha pegar água. Só que a vida toda eu durmo com uma garrafinha de água na cabeceira, e não sei como, naquele momento, eu não lembrei disso.

Quando eu chego na cozinha encontro a panela em chamas. Parecia que aquilo tudo tinha começado naquele exato momento, porque só o tempo que eu fiquei em choque olhando foi suficiente pra se alastrar de uma forma absurda.

Eu tava com a porta do quarto fechada e com certeza não veria nada se não tivesse tido um pesadelo, se não tivesse resolvido levantar por causa desse pesadelo (primeira vez na vida que faço isso), se não tivesse esquecido que tinha água na cabeceira. Para eu sair do ape para pegar um extintor teria que passar pela cozinha, como eu faria isso se não tivesse acordado naquele exato momento?

Quem me conhece sabe da minha fé, das minhas crenças. Mas também sabe que eu não saiu por aí tentando evangelizar o mundo. Sempre respeitei as convicções de cada um e inclusive já tive debates saudáveis com ateus. Outro dia tava conversando com uma grande amiga, e ela me indagou: “Mas Josi, tu apertaria a mão de um homem que justifica a morte de homens, mulheres e crianças por meio de ordens divinas? Tu coloca tua fé nele? Eu não, eu me recuso".

Agora, me expliquem, o que foi que aconteceu essa noite?

Não acho que podemos explicar Deus na sua plenitude, mas a razão é suficiente para justificar a conclusão de que um criador transcendente do universo existe e é a fonte absoluta de bondade moral. Ele é a melhor explicação para a existência de tudo a partir de um momento no passado finito, e também a para o ajuste preciso do universo, levando ao surgimento de vida inteligente. Deus também é a melhor explicação para a existência de deveres e valores morais objetivos no mundo. Com isso, quero dizer valores e deveres que existem independentemente da opinião humana.

E cada dia mais eu acredito na existência de Deus não apenas como mais uma questão de fé, mas passível de prova lógica e racional.

13 de mar. de 2014

o caminho para o trabalho era o mesmo. a vózinha fazendo sua caminhada matinal, o cheiro de café da casa amarela, o abano pro tio da padaria, a moça loira passeando com o cachorro, tudo igual, se não fosse um olhar assustado e uma memória sem fim que veio depois do abraço.

fiquei por alguns instantes tentando lembrar o ano, mas desisti quando tive que fazer contas.
eu acabara de voltar das férias. sentava na primeira carteira da fileira do meio da classe, o que dificultava que ele, um guri tão preguiçoso para os estudos, se pusesse a caminhar em minha direção. mas mesmo assim, ele veio. e veio vindo como quem não entrega que vem, do mesmo jeito que não entregava o que sentia por mim. veio vindo com uma retidão sem pressa, em passos bem marcados, daqueles de quem pisa no caminho acertado da vida, daqueles de quem se propõe a sentenciar o futuro antes que o destino se dê conta da sua existência. afinal, a vida da gente só é da gente mesmo quando a gente não espera para viver, quando a gente adianta a chegada ao fim da dor, antes da mão do destino, antes que o destino nos olhe e venha nos socorrer. e era assim que ele vinha, se fazendo despercebido para o destino, para os colegas, para o que ele mesmo tinha se feito como guri, negando suas características de aluno indisciplinado, insensato, insensível. ali, naquele momento, havia toda uma coordenação em seus movimentos, ele vinha com disciplina nos pés.

eu, em meio aquele tumulto de gente que falava sem parar sobre seus episódios de férias, não tirava o olho da porta da sala, na expectativa de vê-lo em meio a minha saudade, que provavelmente deve ter me ajudado a ensurdecer para os outros quando o vi entrar.

não se passaram quinze segundos do caminhar dele da porta até a minha carteira para que eu soubesse que aquele instante tornar-se-ia o sorriso mais longo do dia.
eu estava ali imóvel acreditando que ele não me veria, acreditando que ele não teria sensibilidade suficiente para criar coragem e esquecer os outros e ter razões de se lembrar de mim. mas naqueles quinze segundos eu percebi o quanto a saudade dele era parecida com a minha, o quanto o retorno às aulas havia demorado a chegar para ele como para mim, o quanto ele era capaz de determinar o que ele queria e alcançar o que principia o sorriso de uma guriazinha que estava a descobrir o mundo.

e ele veio. com rumo certo no par de tênis de que eu gostava. ele não dobrou na primeira fileira em direção ao fundo -onde ele sentava. ele veio vindo com os olhos absortos nos meus. não cumprimentou ninguém, não viu ninguém. entrou no corredor da minha fileira. e, ainda com a mochila nas costas, abaixou até a altura da minha face, me deu um beijo na bochecha e então foi ao seu lugar. não disse uma palavra. não pronunciou uma onomatopeia que não fosse o estalar do beijo que havia me dado.

passou o ano todo me cercando com o olhar, talvez seu melhor vocabulário.
mudo. silencioso. quieto. cheio de verdade.
certamente não era preciso dizer nada.

e agora o que eu sinto é saudade de tudo que a gente é e sente quando se é criança.

11 de mar. de 2014

em frente aos fogões a lenha, as antigas amanheciam antes do sol e talvez se deitassem antes de estarem cansadas para o outro dia. o que havia naqueles temperos do passado e nas manhãs em que os galos é que despertavam só podia ser um mistério das coisas inacabadas. nos mercados em que iam não se achava nada pronto. eram os ovos, eram farinhas e mais o que precisavam cheirados com os dedos, olhares e narinas. como se as antigas estivessem a procurar uma concha integra de caramujos vivos numa praia de conchas pisadas. voltavam ao lar e amanheciam no dia seguinte. estavam dispostas a passarem o pré-almoço fazendo a refeição da família com um amor que não tem pressa para gulodices. o vinho que se punha à mesa havia sido preparado há muitos anos e naqueles dias tinham elas o prazer de colher os verdadeiros frutos da uva. estavam no tempo certo no qual as coisas nunca estavam prontas e careciam delas para o preparo e, consequentemente, para o seu sabor.

nos dias de hoje, a mais linda das antigas que eu tive a graça divina de conviver, a dona Eva, me diria que o mau do mundo são as coisas prontas. são esses pacotes que se vendem no mercado e que podem se comprar muito depois de se apagar a luz do sol. aquelas mulheres diriam que, na verdade, não estamos prontos para o passado e ansiamos com muita pressa e desgraça o sabor do futuro.

e desse mundo que nos dá temperos prontos e rápidos elas lamentariam, com certeza.